domingo, 23 de março de 2014

Pina: O filme!









Pina: O filme!
Rita Santana
 

O filme Pina de Wim Wenders é uma grande homenagem aos artistas, aos bailarinos, a todos nós que sonhamos com a Arte e àqueles que dedicam a vida à expressão. É linguagem o que se estabelece no corpo-signo que comunica, e é entrega o que vemos em cada gesto. Sugiro que assistam!

É também uma apresentação de Pina ao público. Pina está presente ali, na vida de cada bailarino e consegue penetrar em nós com intimidade. Saímos de lá um pouco bailarinos, um pouco íntimos da personagem. Dá vontade de voltar a dançar mais em casa, de movimentar novamente o corpo. Dá saudade de Zebrinha, coreógrafico e bailarino baiano! Há um discurso pessoal em cada partitura física dos bailarinos que transmitem a sua subjetividade, a sua história física e humana utilizando as composições criadas pelo corpo.

As coreografias trazem a marca do humano, da dor humana, das suas impossibilidades. A palavra obstáculo surge no filme como algo a ser superado, vencido e transposto com o corpo, com o movimento do corpo, e com a própria alma.

Bailarinos lançam os seus corpos sobre águas, sobre pedras, sobre corpos, sobre o chão, sobre o outro. Uma bailarina revela o seu relacionamento dramático, cênico, coreográfico com um hipopótamo imenso, soberbo – metáfora da própria Pina – uma espécie de pedra animada, personificada. Os elementos da natureza estão presentes. Aprendemos a filosofia do grupo e de Pina através também das imagens; sabemos que estamos percorrendo cenários, matérias anteriormente sinalizadas no seu universo: água, terra, montanhas. Bailarinos nadam no palco!

Há uma coreografia em que uma bailarina entra completamente de preto, decidida, firme e bela com uma pá na mão. Ela traz um saco de terra e dança a vida e a morte, lançando terra sobre a bailarina leve, translúcida e jovem, que tenta sobreviver à própria morte. Vemo-nos em ambas! Naquela que tem que cumprir o ritual de enterro, afinal, o nosso cotidiano exige que a gente mate, enterre e sobreviva às dores, ao caos, aos desânimos e demônios da vida; às pessoas, ao Estado. É perverso lançar terra à sobrevivente que luta para se manter em pé, viva, firme.  Lançam terra sobre nós o tempo inteiro, entretanto. Soterram a nossa voz, o nosso silêncio. Soterram os nossos sonhos, os nossos livros, os nossos delírios, nossas crenças, soterram a nossa paz, a nossa rotina, os nossos amores, o nosso amor.

Também nós nos tornamos muitas vezes os que soterram, os soterradores, coveiros de nós mesmos e do que sonhamos. Soterramos também os que amamos com nossas observações grosseiras, com nossas palavras que só colaboram para o mal-estar do outro. Quando insistimos em lembrar episódios que ferem os nossos amores, sejam eles amigos, irmãos, namorados, maridos, esposas, amantes. Será? Sim, certamente.

Soterramos quando jogamos terra na alegria do nosso afeto somente porque nada temos a ver com ela, com a sua causa ou principalmente porque não somos a causa. Quando não somos nós os protagonistas da alegria do outro, isso, muitas vezes, incomoda. Jogamos terra no outro quando perdemos o pouco tempo que temos com os amigos para cobranças. Cobramos impostos afetivos caríssimos demais porque não ligou dizendo que viria, porque não ligou quando chegou, porque nunca mais não sei o quê. E viramos aquele cobrador de impostos capaz de tomar dos pobres, muitas vezes desprovidos de culpa, desprovidos da intenção de ferir o outro e sem qualquer moeda sobrando para pagamento, afinal, às vezes estamos com o bolso furado de afeto, de paciência. Cobramos do outro o que somos e insistimos para que ele aja como eu agiria.

Pois é, Pina! A dança está nas nossas vidas. Nas nossas cabeças. Os olhos fechados das bailarinas as transportam para sensações e sentimentos únicos, precisos. A coreografia mostra duas mulheres que ocupam um cenário composto de muitas cadeiras, paredes e silêncios. A moça cega, de olhos fechados, circula pelo palco sem que derrube as cadeiras, pois um homem – talvez um mordomo -  vai retirando tudo do caminho. Ele não tem nenhuma importância e ao mesmo tempo tem toda a importância, pois parece carregado de amor por ela, pelo seu amor, pela sua vida. Ele apenas a ajuda, serve-se para ela e a olha com veneração, ciúme, amor. A sua presença é coberta de paixão e zelo. Alguém cuida daquela moça transtornada, da sua angústia, da sua história, da sua cegueira, da sua doença. Alguém que, em silêncio, é invisível e apenas retira os obstáculos, pois, do contrário, ela poderia se ferir, se machucar, esbarrar nos móveis espalhados pelo espaço. E sabemos interpretar tão pouco esse personagem, até mesmo para quem amamos. A gente não sabe poupar a dor ao outro. Antes, deixamos que ele se acabe em meio às cadeiras do cenário. 

A moça lança-se nos braços de um homem e é arrancada por outro bailarino-personagem e a vertigem perigosa com que a cena se repete é simplesmente maravilhosa, precisa, impossível. A técnica é utilizada ao limite na rapidez com que executam seus movimentos. E lá estamos nós! Arrancados, na nossa cegueira, daquilo que amamos, daquele que queremos. A impotência dos amantes é tremenda e não há vilões, nem culpados. Cada um imerso na sua verdade, age, atua, arranca, toma, entrega, julga. Quem retira a moça dos braços do amado, também ama ao seu modo; também sofre de paixão, também dói! E o que é o amor senão essa ciranda de arrancares e deixares.

Em muitos momentos, o filme tem a natureza como cenário e nos oferece as árvores, o verde. Os bailarinos se permitem também movimentos tipicamente destinados às bailarinas. O lugar destinado a cada gênero no balé é deslocado: os bailarinos sofrem e se lançam nos braços de outro bailarino e se lançam ao chão e ao espaço, gritam, chamam, amam. O sofrimento e a leveza, o colo e a força para segurar o outro são compartilhados entre homens e mulheres. Deslocamento necessário também na vida!

Há um quadro lindo no filme quando uma mulher vestida de vermelho caminha sobre degraus e durante a caminhada cai reta, de frente e, todas as vezes em que cai, o homem a segura e novamente ela volta a caminhar. São nossas fragilidades expostas e transformadas em dança. Nossos desmaios, nossos tíbios passos pela vida.

A coreografia é preenchida pela partitura interna de cada ator-bailarino. A velhice surge sem obstáculo à continuidade do profissional em cena. O tempo parece, antes, amadurecer a linguagem do corpo. A comunicação mostra-se mais fluida, menos artificial ou estudada e mais orgânica. Os conselhos de Pina aos bailarinos nos deixam seus rastros pedagógicos: “Dance por Amor.”, “Procure o seu caminho”. Os bailarinos ficam perseguindo os mistérios da dança, a trilha para alcançar a perfeição. Indagações sobre a vida, a profissão, o passo, o gesto, a forma – tão nossas as preocupações dos bailarinos.

A memória de quem começou muito cedo na Companhia. De quem recentemente chegou. Mostram-nos os dentes e balançam bundas e quadris. Recria-se a atmosfera dos testes iniciais. Os testes! Qual o ator que já não viveu esse drama? Toda a gente o vive! Somos testados o tempo inteiro! Às vezes acordamos parecendo que estamos indo pra mais uma audição. Seremos testados! Esse é um momento mágico no filme.

Leãozinho de Caetano Veloso aparece na coreografia do bailarino mais velho que tamborila no próprio corpo: as mãos e o rosto são a sua matéria-prima. Após conhecer o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, ouvir Caetano ali também, realmente, dá uma alegria e um orgulho muito grande. Pura emoção! Além do mais, parece que estamos diante dos desejos mais íntimos dos bailarinos, seus sonhos coreográficos, suas canções, seus cenários. Há uma bailarina brasileira na companhia e a sua coreografia é cheia de graça e alegria, força.

O efeito 3D nos aproxima dos bailarinos e nos transforma em mais um deles. Circulamos pelo cenário como se fizéssemos parte do espetáculo, assim a cortina chega a roçar o nosso rosto. Talvez esse efeito tenha concorrido para a proximidade particular com o espetáculo. Todo o filme é um impacto na alma.



http://www.wim-wenders.com/movies/movies_spec/pina/pina.htm

Nenhum comentário:

Postar um comentário