Pina:
O filme!
Rita Santana
O filme Pina de Wim Wenders é uma grande homenagem aos artistas, aos
bailarinos, a todos nós que sonhamos com a Arte e àqueles que dedicam a vida à
expressão. É linguagem o que se estabelece no corpo-signo que comunica, e é
entrega o que vemos em cada gesto. Sugiro que assistam!
É também uma apresentação de Pina ao público.
Pina está presente ali, na vida de cada bailarino e consegue penetrar em nós
com intimidade. Saímos de lá um pouco bailarinos, um pouco íntimos da
personagem. Dá vontade de voltar a dançar mais em casa, de movimentar novamente
o corpo. Dá saudade de Zebrinha, coreógrafico e bailarino baiano! Há um
discurso pessoal em cada partitura física dos bailarinos que transmitem a sua
subjetividade, a sua história física e humana utilizando as composições criadas
pelo corpo.
As coreografias trazem a marca do
humano, da dor humana, das suas impossibilidades. A palavra obstáculo surge no
filme como algo a ser superado, vencido e transposto com o corpo, com o
movimento do corpo, e com a própria alma.
Bailarinos lançam os seus corpos
sobre águas, sobre pedras, sobre corpos, sobre o chão, sobre o outro. Uma
bailarina revela o seu relacionamento dramático, cênico, coreográfico com um
hipopótamo imenso, soberbo – metáfora da própria Pina – uma espécie de pedra
animada, personificada. Os elementos da natureza estão presentes. Aprendemos a
filosofia do grupo e de Pina através também das imagens; sabemos que estamos
percorrendo cenários, matérias anteriormente sinalizadas no seu universo: água,
terra, montanhas. Bailarinos nadam no palco!
Há uma coreografia em que uma
bailarina entra completamente de preto, decidida, firme e bela com uma pá na
mão. Ela traz um saco de terra e dança a vida e a morte, lançando terra sobre a
bailarina leve, translúcida e jovem, que tenta sobreviver à própria morte. Vemo-nos em ambas! Naquela que tem
que cumprir o ritual de enterro, afinal, o nosso cotidiano exige que a gente
mate, enterre e sobreviva às dores, ao caos, aos desânimos e demônios da vida;
às pessoas, ao Estado. É perverso lançar terra à sobrevivente que luta para se manter
em pé, viva, firme. Lançam terra sobre
nós o tempo inteiro, entretanto. Soterram a nossa voz, o nosso silêncio.
Soterram os nossos sonhos, os nossos livros, os nossos delírios, nossas
crenças, soterram a nossa paz, a nossa rotina, os nossos amores, o nosso amor.
Também nós nos tornamos muitas vezes
os que soterram, os soterradores,
coveiros de nós mesmos e do que sonhamos. Soterramos também os que amamos com
nossas observações grosseiras, com nossas palavras que só colaboram para o
mal-estar do outro. Quando insistimos em lembrar episódios que ferem os nossos
amores, sejam eles amigos, irmãos, namorados, maridos, esposas, amantes. Será?
Sim, certamente.
Soterramos quando jogamos terra na
alegria do nosso afeto somente porque nada temos a ver com ela, com a sua
causa ou principalmente porque não somos a causa. Quando não somos nós os protagonistas da alegria do outro, isso, muitas
vezes, incomoda. Jogamos terra no outro quando perdemos o pouco tempo que temos
com os amigos para cobranças. Cobramos impostos afetivos caríssimos demais porque
não ligou dizendo que viria, porque não ligou quando chegou, porque nunca mais
não sei o quê. E viramos aquele cobrador de impostos capaz de tomar dos pobres,
muitas vezes desprovidos de culpa, desprovidos da intenção de ferir o outro e
sem qualquer moeda sobrando para pagamento, afinal, às vezes estamos com o
bolso furado de afeto, de paciência. Cobramos do outro o que somos e insistimos
para que ele aja como eu agiria.
Pois é, Pina! A dança está nas nossas
vidas. Nas nossas cabeças. Os olhos fechados das bailarinas as transportam para
sensações e sentimentos únicos, precisos. A coreografia mostra duas mulheres
que ocupam um cenário composto de muitas cadeiras, paredes e silêncios. A moça
cega, de olhos fechados, circula pelo palco sem que derrube as cadeiras, pois
um homem – talvez um mordomo - vai
retirando tudo do caminho. Ele não tem nenhuma importância e ao mesmo tempo tem
toda a importância, pois parece carregado de amor por ela, pelo seu amor, pela sua
vida. Ele apenas a ajuda, serve-se para ela e a olha com veneração, ciúme,
amor. A sua presença é coberta de paixão e zelo. Alguém cuida daquela moça
transtornada, da sua angústia, da sua história, da sua cegueira, da sua doença.
Alguém que, em silêncio, é invisível e apenas retira os obstáculos, pois, do
contrário, ela poderia se ferir, se machucar, esbarrar nos móveis espalhados
pelo espaço. E sabemos interpretar tão pouco esse personagem, até mesmo para
quem amamos. A gente não sabe poupar a dor ao outro. Antes, deixamos que ele se
acabe em meio às cadeiras do cenário.
A moça lança-se nos braços de um
homem e é arrancada por outro bailarino-personagem e a vertigem perigosa com
que a cena se repete é simplesmente maravilhosa, precisa, impossível. A técnica
é utilizada ao limite na rapidez com que executam seus movimentos. E lá estamos
nós! Arrancados, na nossa cegueira, daquilo que amamos, daquele que queremos. A
impotência dos amantes é tremenda e não há vilões, nem culpados. Cada um imerso
na sua verdade, age, atua, arranca, toma, entrega, julga. Quem retira a moça
dos braços do amado, também ama ao seu modo; também sofre de paixão, também
dói! E o que é o amor senão essa ciranda de arrancares e deixares.
Em muitos momentos, o filme tem a natureza
como cenário e nos oferece as árvores, o verde. Os bailarinos se permitem
também movimentos tipicamente destinados às bailarinas. O lugar destinado a
cada gênero no balé é deslocado: os bailarinos sofrem e se lançam nos braços de
outro bailarino e se lançam ao chão e ao espaço, gritam, chamam, amam. O sofrimento e
a leveza, o colo e a força para segurar o outro são compartilhados entre homens
e mulheres. Deslocamento necessário também na vida!
Há um quadro lindo no filme quando
uma mulher vestida de vermelho caminha sobre degraus e durante a caminhada cai
reta, de frente e, todas as vezes em que cai, o homem a segura e novamente ela
volta a caminhar. São nossas fragilidades expostas e transformadas em dança.
Nossos desmaios, nossos tíbios passos pela vida.
A coreografia é preenchida pela
partitura interna de cada ator-bailarino. A velhice surge sem obstáculo à
continuidade do profissional em cena. O tempo parece, antes, amadurecer a
linguagem do corpo. A comunicação mostra-se mais fluida, menos artificial ou
estudada e mais orgânica. Os conselhos de Pina aos bailarinos nos deixam seus
rastros pedagógicos: “Dance por Amor.”, “Procure o seu caminho”. Os bailarinos
ficam perseguindo os mistérios da dança, a trilha para alcançar a perfeição.
Indagações sobre a vida, a profissão, o passo, o gesto, a forma – tão nossas as
preocupações dos bailarinos.
A memória de quem começou muito cedo
na Companhia. De quem recentemente chegou. Mostram-nos os dentes e balançam
bundas e quadris. Recria-se a atmosfera dos testes iniciais. Os testes! Qual o
ator que já não viveu esse drama? Toda a gente o vive! Somos testados o tempo
inteiro! Às vezes acordamos parecendo que estamos indo pra mais uma audição.
Seremos testados! Esse é um momento mágico no filme.
Leãozinho de Caetano Veloso aparece
na coreografia do bailarino mais velho que tamborila no próprio corpo: as mãos
e o rosto são a sua matéria-prima. Após conhecer o Museu da Língua Portuguesa, em
São Paulo, ouvir Caetano ali também, realmente, dá uma alegria e um orgulho
muito grande. Pura emoção! Além do mais, parece que estamos diante dos desejos
mais íntimos dos bailarinos, seus sonhos coreográficos, suas canções, seus
cenários. Há uma bailarina brasileira na companhia e a sua coreografia é cheia
de graça e alegria, força.
O efeito 3D nos aproxima dos bailarinos
e nos transforma em mais um deles. Circulamos pelo cenário como se fizéssemos
parte do espetáculo, assim a cortina chega a roçar o nosso rosto. Talvez esse
efeito tenha concorrido para a proximidade particular com o espetáculo. Todo o filme é um impacto na alma.
http://www.wim-wenders.com/movies/movies_spec/pina/pina.htm
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