Wesley Correia
Noturno
Para Rita Santana
Ai de mim,
maniqueísta que fui,
dei de rolar na cama
a julgar-me diabólico.
Ai de mim,
que, em lúgubre estupidez,
dei de calar os sagrados
sons dos desenhos de minha alma.
Ai de mim,
que, com pés santos, quis contornar
a cartografia dos homens.
Eu ouvia – e recalcava – os outros sagrados.
Ai de mim, tolo no calvário,
dei de comprimir os pulmões
em esquálida opressão.
Ai de mim,
que desconhecia o mistério
a soprar nos ouvidos,
a fundar, nos meus vazios, outras impressões de consciência:
coisas de ancestralidade.
Roncó
Aos sete anos,
cobri-me de palha da costa
e sorri para minha mãe.
Minha mãe, que assim não me sabia,
(ou sempre soube e calou?)
sorriu diante do mistério
e se resignou.
Diante do mistério, não há dinheiro,
posses ou grandes construções.
Há, tão somente, o mistério que nos cala.
Minha mãe e eu,
muito pouco, sabemo-nos.
quase nada, falamo-nos.
bem pouco, fazemo-nos.
E no lugar, para além das razões,
Nanã abençoa os seus
e Omolu, quiçá, já a tenha perdoado.
Carta a Exu
Amigo,
tantas vezes me julguei perdido,
frágil, combalido,
e foste tu a me nortear.
Quantas vezes
foi teu riso a me guiar,
tua carnalidade
espantando as mortes
tão vivas em meu triste olhar.
Então, Amigo,
agora que já não te tenho inimigo,
deixa tudo o quanto não se move pra lá,
e vem estar comigo.
Amigo,
tantas vezes me julguei perdido,
frágil, combalido,
e foste tu a me nortear.
Quantas vezes
foi teu riso a me guiar,
tua carnalidade
espantando as mortes
tão vivas em meu triste olhar.
Então, Amigo,
agora que já não te tenho inimigo,
deixa tudo o quanto não se move pra lá,
e vem estar comigo.
Vem me dar a direção do ato seguinte,
vem apontar o rumo destas paixões.
Vem, Amigo, vamos incendiar,
e, juntos, conhecer o mistério dos vulcões.
Para Lande Onawale
A todos os que sangraram comigo,
dedico este Obi,
aberto em aláfia.
A todos os que tiveram seus laços de amor
espedaçados no horror do jugo,
aos que fizeram vida em meio à morte,
dedico este Obi,
aberto em aláfia.
Aos que foram rumo ao fim,
aos que desejaram fazê-lo,
aos que, em nome da liberdade coletiva,
aprisionaram a sua própria,
aos que desafiaram,
cantaram,
bailaram com seus deuses,
dedico este obi,
aberto em aláfia.
A Orumilá, Odudua, Yá Massê Malê,
Na direção do sempre,
dos caminhos,
dos secretos,
da esperança.
Ao Reino de Ifá,
dedico meu coração,
aberto em aláfia.
A casa da força
Eu moro onde nasce o vento
que, num instante de fúria, arranca árvores,
postes, telhados, pensamentos.
Eu moro onde principia a fonte
e a vejo, em festa, desaguar no mar.
Vejo o mundo diante dela se curvar.
Eu moro onde abrasam as paixões,
onde incendeiam os corações,
onde se queima de amor.
Eu moro embaixo do fundo da terra,
eu faço brotar, crescer e frutificar o sonho,
eu dou o retorno ao profundo dos mundos.
Originalidade é o ponto
alto do livro
“Deus é Negro”
“A literatura liberta”. Essa é
uma das frases que tem ecoado nos eventos de divulgação do livro “Deus é
Negro”, do poeta Wesley Correia. Ditas pelo próprio autor, as palavras ajudam a
definir a obra que subverte a lógica de um Deus branco e abre espaço para a
diversidade.
Com liberdade, coragem e leveza, Correia faz soar, nesta obra, a voz negra historicamente amordaçada. O livro é dividido em três seções: Da Partida, que dá espaço ao eu-negro; Da Chegada, onde as memórias da luta anti-escrava são avivadas; e Da Multiplicação, que aponta para um fenômeno de reconfigurações identitárias. Para compreender melhor as textualidades afro-brasileiras e africanas, é possível consultar, nas últimas páginas, o “pequeno glossário crioulo”.
Com liberdade, coragem e leveza, Correia faz soar, nesta obra, a voz negra historicamente amordaçada. O livro é dividido em três seções: Da Partida, que dá espaço ao eu-negro; Da Chegada, onde as memórias da luta anti-escrava são avivadas; e Da Multiplicação, que aponta para um fenômeno de reconfigurações identitárias. Para compreender melhor as textualidades afro-brasileiras e africanas, é possível consultar, nas últimas páginas, o “pequeno glossário crioulo”.
Deus é Negro, desde o lançamento
na última Bienal do Livro da Bahia passando pela Universidade do Recôncavo da
Bahia e pela Universidade do Estado da Bahia, tem sido recebido com festa e
prestigiado por dezenas de pessoas, a exemplo do poeta e cantor Juraci Tavares,
de 64 anos.“Wesley é um intelectual preocupado com as questões humanas,
sobretudo, negras. Esta obra deve constar em diversas bibliotecas, as pessoas
precisam ter acesso a esse conteúdo que, de forma poética, traz a possibilidade
da existência de vários deuses, abre espaço para a pluralidade. É emocionante”,
contou.
Admiradora de Correia, a poetisa
Vanesca Ferreira não poupou elogios. “ As poesias dele enchem nossa realidade
de lirismo, sem deixar de lado as questões sociais. É impossível lê-lo e não se
encantar”, disse.
No dia em que lançou “Deus
é negro”, na XI Bienal do Livro da Bahia, Wesley Correia participou,
junto com o autor Lima Trindade, de um bate papo mediado pela coordenadora de
Literatura da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), Milena Britto. O
evento deu ao público a oportunidade de conhecer o processo de realização
do livro, navegar pelas entrelinhas da obra. “Uma coisa que tenho aprendido é
respeitar o tempo da literatura. Eu comecei a escrever os poemas desse livro em
2007, mas o meu fazer poético é um exercício muito grande. Meus poemas passam
por uma maturação, eu os reescrevo várias vezes até que eles fiquem realmente
prontos”, disse Wesley.
O resultado desse processo pode
ser degustado pelo público, durante os eventos de divulgação do livro, quando,
sem deixar de lado a emoção, Wesley lê alguns dos poemas. Os aplausos dão
ao poeta a prova de que o esforço tem valido a pena. “A poesia é um canal capaz
de tocar as pessoas sobre assuntos que são ‘jogados embaixo do tapete’. Sou um
poeta, sou um militante. Inegavelmente, na minha obra, esses horizontes fluem.
E o que é melhor: de forma natural, tranquila e divina”, comenta.
Para a produtora cultural Milena
Britto a leitura é uma experiência necessária. “As poesias surpreendem, são
elaboradas, possuem um ritmo sedutor. Li e recomendo esta obra que tem, como
ponto alto, a originalidade”, disse. O livro será lançado nos Estados Unidos,
na Espanha e França, por isso ganhará tradução para o inglês, espanhol e
francês, no primeiro semestre de 2014.
“Deus é
Negro”, que ganhou o último edital setorial de Literatura da FUNCEB através do
Fundo de Cultura, deve ser distribuído gratuitamente para as principais
bibliotecas de Salvador e do interior do estado a partir de Fevereiro de 2014,
mesmo período em que será vendido, a preços populares, em livrarias e bancas de
revistas. Quem não quiser esperar até lá para adquirir seu exemplar, pode
solicitar diretamente com a Pinaúna Editora através do e-mail: atendimento@pinaunaeditora.com.br.
O autor é
natural do
município de Cruz das Almas, no recôncavo baiano, Wesley Correia tem atuado em
torno de questões relacionadas ao combate ao racismo e a valorização da
identidade e da cultura negra. Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos pela
Universidade Federal da Bahia e coordenador de pós-graduação em Estudos Étnicos
e Raciais do Instituto Federal da Bahia – IFBA, Correia é autor, também, do
livro Pausa para um Beijo e outros poemas, tem participado de diversas
coletâneas como poeta e ficcionista, e possui mais três obras em fase de
produção.
Carla
Magnólia
Assessoria
de imprensa
Poesia, diáspora e Identidade: Notas sobre um Deus Negro
Marielson Carvalho1
Sonia Brito2
Sonia Brito2
Deus é Negro (Ed. Pinaúna, 2013), segundo livro de
Wesley Correia, descende de uma linhagem de excelentes grãos poéticos, cuja
substância apresenta aditivos mais afirmativos, reinstaurando uma nova variante
simbólica, mas sem perder o norte de uma visibilidade discursiva que é
essencial em sua autoria: o eu-enunciador negro. Neste livro, a referência
negra é a própria e exata medida dos alicerces da obra, a começar pelo título,
que subverte ironicamente uma idealização cristã sobre a imagem e a semelhança
dos homens em relação a Deus. Outra ideia de gênesis é operada aqui. A mudança
não acontece apenas na cor, mas no sentido das características intangíveis de
Deus. A onipotência, a onisciência e a onipresença encerram em Deus é Negro
menos a sensação de vigilância e opressão, e mais de comunhão e amparo, pois
secularmente, o homem negro sempre se sentiu um dessemelhado dessa humanidade
que aquele Deus apregoava. Divididos em três seções, tematicamente bem definidas,
mas que entre si dialogam simbólica e conceitualmente, os poemas do livro
instauram uma ancestralidade aviltada pelos deuses dos outros em um
tempo-espaço reconfigurado todo nosso. Na primeira seção, Da partida, o poema
“A casa da força” é um abre-caminho que dá a direção e legitima o percurso do
eu-negro em todo o livro. Do poema ecoa a matéria verbal que se fará ouvir em
forma de canto de chamamento, como um tambor a reunir em sua vibração as vozes
da diáspora. No poema seguinte, “Oração”, os elementos vitais se desdobram em
outras forças, assim como dinamizam outras verdades. A saudação aos orixás é um
pedido de licença para que adentremos à Casa Real, onde cada um deles tem
assento e domínio, e por sentimento de pertença a uma simbologia de vida, nos
sentimos abrigados e protegidos (“Suaves bálsamos, singelos de amor”). Ao
leitor, as portas de Deus é negro estão abertas. Percorrer os outros poemas da
primeira seção será uma experiência singular de tradução da tradição a partir
das interações do sujeito poético com as referências de uma africanidade
pessoal e intransferível, de proximidade indissociável entre o sagrado e o
humano, como se vê em “Carta a Exu” (“Amigo,/tantas vezes me julguei
perdido,/frágil, combalido,/e foste tu a me nortear”), “Gratidão” (“A todos que
sangraram comigo,/ dedico este Obi,/ aberto em aláfia”) e “Prece a São Lázaro”
(“Meu São Lazinho,/ proteja a minha casa,/ o meu corpo,/ o meu povo”). Na seção
Da chegada, o eu-negro realça a memória da escravidão e da luta anti-escrava e racista
cujas narrativas foram construídas por personagens míticos e reais, anônimos e conhecidos,
cativos e libertos, negros e mestiços, sozinhos ou em grupo, mas que deixaram
um legado de combatividade e resistência. Poemas como “Entre esquecer e lembrar”
nos dá a medida exata de como Wesley Correia flagra, em quatro versos curtos, a
permanência de um instante com a delicadeza para não tirar da cena o que tem de
mais pungente e revoltante. Nada falta ou exagera. É o menor poema da seção,
mas parece enfeixar todos os outros. A mãe cala no tronco, mas o choro do
negrinho é como se uma revolta escrava já nascesse ali, na senzala. Deus é
negro e está no meio de nós, multiplicado em territórios negros cujas
representações se hibridizam intermitentemente. Na terceira seção, Da
multiplicação, a epígrafe de Gilberto Gil e Waly Salomão nos aponta para um
eu-negro capaz de fazer do próprio processo libertário um fenômeno de
(re)configurações identitárias, como em “A casa de Inácio”: “É que em sendo
brasileiro/de sangue, de natural e de lugar, /Inácio ferve noutras impressões
de identidade, /revela-se em novas expressões de alteridade, /e é um sendo muitos,
/tendo, em si, vários simultâneos.” Nesta última parte de Deus é negro, poemas como
“Esplendor”, que faz uma homenagem a personalidades negras de diversas nacionalidades
e experiências (“Constelação de finíssimo clarão”), e “Rap do Mano Leandro”,
que sintoniza no mesmo dial música e poesia para falar de violência racial contra
a população negra: “Os ‘cara’ não perdoa,/Se nasceu no morro, é pobre e preto,/
É como bicho à toa,/ sem chão, sem grana, sem grão./ Dizem que matam pra/
limpar a sociedade,/ E não importa sexo nem idade, / É pura crueldade. / Então
se liga, falou!/ ‘É nóis’, falou!/ ‘É nóis’, parceiro.”, consolidam a certeza
de que este livro é um excelente resultado de criação não somente literária,
mas também intelectual e política, devido mesmo ao trabalho com que o autor
lidou com diferentes formas e recursos poéticos, assim como teorias e estudos.
O livro ainda traz um pequeno glossário com termos usados nas religiões de
matrizes africanas, o que demonstra tanto a intenção do autor em dividir com o
leitor sua intimidade com as textualidades afro-brasileiras e africanas quanto
ofertar, pela via da poesia, uma alternativa pedagógica no que diz respeito à
linguagem utilizada em algumas comunidades tradicionais. Conceitos fundamentais
da história, o Espaço e o Tempo em Deus é Negro marcam o reconhecimento da
ancestralidade africana e da antecedência à situação das partidas. Sob o olhar
do tempo historiográfico, identifica-se nestes elementos simbólicos o continente
africano no contexto da colonização moderna europeia, quando expressiva parcela
de sua população sofreu terríveis e dolorosos exílios. Desumanizado desde a sofrível
travessia marítima em tumbeiros, até a imposição da condição de mercadoria, o africano
escravizado serviu, durante séculos, aos interesses mercantilistas de uma burguesia
europeia e de uma aristocracia colonial, ansiosas de enriquecimento fácil na exploração
da terra americana e da gente africana. A demanda pelo trabalho compulsório na
América, ligada, essencialmente, à necessidade mercantilista da produção em
larga escala, produziu um lucrativo e próspero mercado de escravos, tornando-se
um elemento estrutural nos três continentes. Na América Portuguesa, por exemplo,
permitirá a formação e expansão de uma estrutura social sustentada na exploração
do trabalho escravo; na Europa atuará como importante fator de acumulação de
capital e, finalmente, nas Áfricas servirá como elemento definidor do destino
dos Estados e dos diversos grupos sociais. Em Deus é Negro a utilização da
linguagem metafórica, inerente à literatura poética, identifica elementos dessa
subversão e inversão de uma ordem sócio-ideológica violentamente imposta. Da
desconcertante afirmação do título à construção de outra ideia de gênesis que
subverte o ideário cristão de um Deus à imagem e semelhança do branco
dominador; da saudação aos orixás no poema “Oração” e da quase unidade do
humano e do sagrado de “Carta a Exu” à desconstrução do preconceituoso mito
religioso em “Exu não é o diabo, não”: em todos eles, exalta-se a tradição e
afirmam-se as referências de uma africanidade essencial ao reconhecimento do
eu-negro. Nesse canto de amor e reverência às populações diaspóricas, Wesley Correia
designa a luta combatente de um povo que não se deixou submisso, que inverteu
uma ordem secularmente estabelecida e consegue demarcar um fantástico encontro
nessas encruzilhadas nas quais Deus só pode ser Negro.
1- Docente da UNEB e doutorando em Literatura e Cultura (UFBA). É autor do livro: "Acontece que eu sou baiano: identidade e memória cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi" (EDUNEB, 2010).
2- Historiadora e Diretora do Departamento de Ciências Humanas e Linguagens do IFBA. É mestre em Pedagogia Profissional (IPE).
2- Historiadora e Diretora do Departamento de Ciências Humanas e Linguagens do IFBA. É mestre em Pedagogia Profissional (IPE).
Referências:
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. O jogo da dissimulação:
abolição e cidadania negra no Brasil.
Companhia das Letras, 2009.
_____________ e FRAGA FILHO, Walter. Uma história do
Negro no Brasil. Salvador:
EDUFBA, 2009.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O
longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
CORRÊA, Maria de Nazaré Fonseca. Literatura, História
e Memória: uma leitura
benjaminiana da poesia de Mario Benedetti.
In:
http://unb.revistaintercambio.net.br/24h/pessoa/temp/anexo/1/283/239.pdf
(acessado em 26/06/2013.)
CORREIA, Wesley. Deus é Negro – Da partida, da
chegada, da multiplicação. Salvador: Ed.
Pinaúna, 2013.
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo:
Ática, 1974.
HALL, Stuart. Da diáspora, identidade e mediações
culturiais. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2003.
MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1982.
MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares do
Brasil, 3ª edição. Rio de Janeiro:
F.Briguiet & Cia. Editores, 1946.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da ficção:
diálogos com a história e a literatura. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DA ANPUH. História: Fronteiras,
20., 2009. Anais... São Paulo:
Humanistas, FFCHL/SP, ANPUH, 1999. v. II, p. 819-831.
SLENES, Robert. "'Malungu ngoma vem!'África
coberta e descoberta no Brasil". Revista USP,
n.12,
dez/jan/fev 1991-1992, pp.48-67.
______. Na senzala uma flor: as esperanças e as
recordações na formação da família escrava –
Brasil sudeste, século XIX, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999.
Fotos: Carol Garcia
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