Lílian Almeida
Curvaturas nas margens da baía
Lá
fora o calor incendeia o dia mal acabado de nascer sobre a Baía de
Guanabara. Dentro do meu quarto de hotel o ar condicionado trabalha
incansavelmente. Deslizo o creme sobre a pele prevendo a sua mão. Em que
hotel vamos nos encontrar? Quando for, deixarei as linhas e os ângulos e
seguirei reto ao nosso encontro. Estico as saliências de qualquer
percurso. Exercito as curvaturas nas margens da baía. O café com vista
para o mar aplaca os números e percentuais e relatórios das visitas às
gerências das empresas. Refaço-me firme e doce. Exatidão sem rigidez.
Determinação.
O elevador conduz-me à sala de reuniões. Relatórios de performance e gráficos e índices e rendimentos e déficits. Gerentes e ingerências e gerenciamentos. Firmeza e precisão nos posicionamentos apontam as quadraturas e angulações. O ângulo reto me exprime e me imprime. Oprime. Afasto os números que sorriem do meu calor. Respiro e refaço o caminho empurrando as linhas, abrindo os ângulos. O sorriso é a coragem para a equipe alcançar as metas.
Administro os ponteiros do relógio. O taxi leva-me à beira mar. A água de coco refresca o quente do meu corpo. Os homens jogam futevôlei na praia, mulheres e homens caminham no calçadão, os ambulantes oferecem o que é necessário. Sentada de frente para o mar sou alvo da atenção masculina. Amado, você virá me fazer companhia? Gracejos e sorrisos são lançados. Recebo-os em cesta adornada e sorrio. O moço de bermuda floral e coco na mão pergunta se pode sentar. Consinto e percebo seu riso escorrendo dos olhos. O grave da voz contrasta com a ginga das palavras na conversa sem rumo apontada para as rendas da minha blusa. Tece e enreda seus fios de desejo na minha blusa, nos colares, nos cabelos. Revejo os arcos da linha que empurrei. Sorrio em ampla curvatura. O sol despede-se e eu também. Ele estará naquele bar da orla tocando e cantando samba e dedicará uma canção para mim. E você, Amado, toca jazz, samba, rock? Ofereça-me o seu amor, eu estarei na primeira fila.
O elevador conduz-me à sala de reuniões. Relatórios de performance e gráficos e índices e rendimentos e déficits. Gerentes e ingerências e gerenciamentos. Firmeza e precisão nos posicionamentos apontam as quadraturas e angulações. O ângulo reto me exprime e me imprime. Oprime. Afasto os números que sorriem do meu calor. Respiro e refaço o caminho empurrando as linhas, abrindo os ângulos. O sorriso é a coragem para a equipe alcançar as metas.
Administro os ponteiros do relógio. O taxi leva-me à beira mar. A água de coco refresca o quente do meu corpo. Os homens jogam futevôlei na praia, mulheres e homens caminham no calçadão, os ambulantes oferecem o que é necessário. Sentada de frente para o mar sou alvo da atenção masculina. Amado, você virá me fazer companhia? Gracejos e sorrisos são lançados. Recebo-os em cesta adornada e sorrio. O moço de bermuda floral e coco na mão pergunta se pode sentar. Consinto e percebo seu riso escorrendo dos olhos. O grave da voz contrasta com a ginga das palavras na conversa sem rumo apontada para as rendas da minha blusa. Tece e enreda seus fios de desejo na minha blusa, nos colares, nos cabelos. Revejo os arcos da linha que empurrei. Sorrio em ampla curvatura. O sol despede-se e eu também. Ele estará naquele bar da orla tocando e cantando samba e dedicará uma canção para mim. E você, Amado, toca jazz, samba, rock? Ofereça-me o seu amor, eu estarei na primeira fila.
O
ar condicionado do hotel refrigera as chamas do meu corpo. O banho
ainda goteja em minha pele. Onde estará seu corpo, Amado, que não se
precipita em líquido sobre o meu? Um manto de calor envolve a cidade. As
calçadas fervilham gente em todas as direções. O bar do hotel é
refrigerado, toca blues. Tomo um mojito acompanhada de olhares. Há calor
demais no meu sangue para um blues. O bar do samba convida-me para o
encontro.
Sento de frente para o palco, aprecio as mesas em volta, aceno para o vocalista e tocador de cavaquinho. Uma hora e meia de samba. Minutos depois ele chega com o frescor da brisa. Um beijo estala em minha face. Quer saber se gostei, quais as minhas impressões da apresentação. Afirmo que o grupo é bom, peço batata frita e um sex on the beach ao garçom. Ele diz que eu jamais esqueceria um sexo na praia feito com ele. O arriscado risca as perpendiculares e as paralelas. Recuo e enquadro-me. A mão dele brinca com a minha. Após o drink permito o beijo com sabor de groselha e pêssego. Ondas de calor propagam o compassado encontro de saliências e reentrâncias na noite quente.
Sento de frente para o palco, aprecio as mesas em volta, aceno para o vocalista e tocador de cavaquinho. Uma hora e meia de samba. Minutos depois ele chega com o frescor da brisa. Um beijo estala em minha face. Quer saber se gostei, quais as minhas impressões da apresentação. Afirmo que o grupo é bom, peço batata frita e um sex on the beach ao garçom. Ele diz que eu jamais esqueceria um sexo na praia feito com ele. O arriscado risca as perpendiculares e as paralelas. Recuo e enquadro-me. A mão dele brinca com a minha. Após o drink permito o beijo com sabor de groselha e pêssego. Ondas de calor propagam o compassado encontro de saliências e reentrâncias na noite quente.
A curva do encontro é aqui?
UMA VERSÃO DO MITO DO
PRÍNCIPE ENCANTADO?
Helena Parente Cunha
(Escritora e Professora
Emérita da UFRJ)
A paisagem literária de nossa
época pós-moderna, entre as multiplicidades de formas, tons, temas, caminhos,
apresenta novidades surpreendentes, como a vigorosa emergência de tantos jovens
talentos. Alegro-me ao reconhecer em Lílian
Almeida um nome que, com Todas as cartas
de amor, passa a pertencer a essa promissora floração.
Este livro de estreia aponta o
início da carreira de uma escritora já segura do seu ofício. O texto bem
construído atinge a dimensão poética através de belas e inovadoras imagens,
revelando a consciência da responsabilidade de quem pretende dizer o indizível
do misterioso desejo humano de ser feliz. Como? Por onde ou aonde, eis a
questão.
Assim, entre as tantas
possibilidades de interpretação que todo texto literário propicia, podemos
optar pela leitura destas cartas nos moldes de uma bem sucedida e atualizada
versão do mito do Príncipe Encantado que, após tantas buscas, andanças ou
cavalgadas, procede ao resgate de sua
solitária Cinderela ou Branca de Neve ou a Bela Adormecida. Este mito, como se
sabe, subsiste ao longo dos séculos da História e das Geografias.
No entanto, em nossos tempos
liberados dos entraves passados, a situação pode inverter-se, cabendo à mulher
empreender a incansável busca. Desde o início deste livro, me deparei com a
personagem em permanente movimento à procura do Amado desconhecido:
Caminho pela casa. O que busco? Não sei.
Talvez os indícios da sua
presença, os registros da sua passagem pela
minha vida. Você também está
sempre indo? Quando o caminho das suas idas
chegará à minha porta? Porta
da casa, do táxi, do hotel, do avião. Por
qualquer uma delas as nossas trilhas
podem se cruzar.
O Amado desconhecido e almejado é
o destinatário das cartas escritas em alta voltagem do desejo que leva a
missivista a elaborar fantasias, visualizando caminhos e encontros e delícias
próprias dos pares amantes.
A voz que vai tomando corpo ao
longo das cartas pertence a uma jovem e competente executiva, sempre em viagens
para visitar empresas e avaliar desempenhos.
“Percorrer os escritórios, os percentuais de lucro, as baixas de venda.
Planilhas, números, contabilidades e prestações de conta” e todos os itens
da dinâmica empresarial.
Lílian administra o fluxo
acelerado do texto que acompanha o ritmo de nossa época. Enquanto o Príncipe ia
ao sabor do galope do seu corcel ou o Infante do poema “Eros e Psique” de Fernando
Pessoa caminhava e “viria / de além do muro da estrada / .../ vencendo estrada
e muro”, nestas cartas, cabe ao eu feminino deslocar-se incessantemente,
registrando as impressões do seu passar e do passar das pessoas e do mundo em
torno de um eixo que rege a construção das cartas: “Estou
sempre indo”, mote repetido muitas vezes ao longo do caminhar da trama.
Sabiamente, Lílian apresenta ou
representa o conteúdo das cartas de sua personagem através de breves orações,
sugerindo a rapidíssima velocidade com que ela se movia de um lugar para outro
ou via as coisas e as gentes em perpétua movimentação, “sempre indo”.
No entanto, aos poucos, se
avoluma o vazio dessa procura do Amado, nas tantas idas a tantos lugares. A um
certo momento, as indagações se voltam
para o plano interior da complexa rede psíquica e sempre com o original recurso
metafórico e em sintonia com a
velocidade do tempo e da técnica por onde as coisas e as vidas se escoam, a
enunciação das cartas toma o rumo reflexivo:
Um tempo sem ir e voltar brinca com as
vidas. As pessoas passam a
caminho delas mesmas. Também eu vou em busca. De você? De mim?
De
quê? (...)
Terá você passado com os olhos cheios de vida e não me viu? (...)
Olho para mim mesma. (...) procuro no micro-caos em mim uma abertura, um
espaço vazio para ver além do que enxergo. (...) Quando foi que deixei de
enxergar?
Na tensão entre ver e enxergar, a
urgência de identidade se impõe e, segurando com mão firme os fios condutores
do processo, o sujeito da enunciação, num quarto de hotel, empreende novas
descobertas a fim de costurar pedaços soltos que se contornam e se completam. A
imagem do quarto como útero sugere o aconchego praticamente impossível para
essa vida itinerante da executiva sonhadora, mas também acena para a ideia de
provável nascimento: “O quarto é quente
como um útero.”
E dando prosseguimento à nova
etapa da busca, a personagem, diante do espelho, conduz a performance: “Tiro
as roupas ritualisticamente”. Impossível resistir ao apelo simbólico que
aponta para um ritual de despojamento. Em consequência de recente revisão de valores, o eu se despe
dos excessos inúteis e, diante da própria nudez, se vê frente a frente, nas
revelações do corpo. E se percebe na recusa do supérfluo, sejam opiniões ocas e
padronizadas, sejam tralhas ou bugigangas com que tantas vezes embaralhamos
nossa rotina. E a tensão entre o ver e o enxergar se desfaz em mais uma
revelação: “O espelho exibe o que eu não via.
Eu mesma”.
O Dicionário de símbolos me
lembra que o espelho reflete a verdade, o conteúdo do coração e da consciência.
Diante do espelho, a personagem descobre suas verdades: “Desvendo-me. Perscruto-me”.
Lílian conduz com segurança a delicada
complexidade do sentir desta descoberta que, de algum modo, se preparava e se
antecipava: “Em cada carta que escrevo
diviso a mim mesma no espelho das palavras. Refletir e refratar”, para, em
outro momento, atingir a auto-revelação: “Como
eu te buscava, se estava perdida?” E, epifanicamente, o encontro tão
almejado: “Eu-mim-comigo-própria.”
Se a leitura do mito do Príncipe Encantado, em suas várias modalidades, pode nos direcionar para uma interpretação junguiana, por outro lado, o seu reverso nos leva a uma possibilidade semelhante. Aqui, a missivista narra a representação da busca do Amado, enfrentando caminhos, pousos, números, passando por roteiros aéreos, terrestres, marítimos, em aeronaves, trens, taxis, desarticulando ponteiros de relógios ou invertendo o fora e o dentro, ora daqui para ali, ora de lá para cá, de onde em onde, de quando a quando.
O mito do Príncipe Encantado e de
sua amada se reproduz, como disse, no famoso poema de Pessoa “Eros e Psique”,
no qual, ao fim de muitas andanças, o Infante chega ao castelo e, diante da
Princesa Adormecida, descobre que ele mesmo “era a Princesa que dormia”. Nas
pegadas de Jung, o equilíbrio psíquico é alcançado quando Animus (princípio masculino) e Anima
(principio feminino) se encontram, se unem e se integram. O psicólogo pensa na
harmonização da personalidade que acontece no homem, quando ele se une ao seu
lado feminino (Anima), enquanto o
equilíbrio da mulher se processa quando ela se encontra com seu lado masculino
(Animus). Como ocorre neste poético livro Todas as cartas de amor.
Essa união de que nos fala Jung
celebra a integração da mulher com ela mesma, com suas características ligadas
a Animus, dando-se o mesmo com o homem em relação a Anima. Este encontro pode
gerar um estado de felicidade. Aqui, a missivista aplaca seu desejo de ser
feliz, ao descobrir: “Eu-mim-comigo-própria”.
Lílian
Almeida mostra um dos caminhos possíveis e redentores que nos leva a um estado
de felicidade, isto é, o encontro de nosso eu externo com o eu interior,
inserido na delicada rede psíquica do sentir maior. As reverberações do mito do
Príncipe Encantado presentes em Todas as
cartas de amor nos oferecem um roteiro bem tramado para nossa ânsia de
revelações. Uma das possibilidades da gente ser feliz.
Ensaio para uma conversa:
- Em termos identitários, quem é Lílian e como ela se definiria?
Diria que, em resumo, Lílian é mulher, negra, baiana. Esses lugares sociais marcam sobremaneira o meu estar no mundo, o meu identificar-me. A partir daí me posiciono nas distintas esferas de atuação, seja como filha, amiga, professora, pesquisadora e, agora, escritora.
- Quais são as suas influências mais arrebatadoras nas artes? Quais são as grandes paixões de Lílian?
Minhas grandes paixões: a literatura e o mar. Preciso dos dois para viver bem. Certa ocasião precisei morar num módico aposento, bem pequeno mesmo. Meus livros estavam guardados em caixas. Sentia falta de alguma coisa naquele espaço restrito. Improvisei uma estante e coloquei alguns livros. Eu precisava vê-los diariamente. Não bastava saber que eles estavam ali, guardados. Isso deu-me o alento que precisava para me sentir bem naquele lugar. O mar, por sua vez, é uma paixão serena como água de baía. Vê-lo, ouvi-lo, senti-lo é uma experiência delicada e profunda, de muito amor, reverência e harmonia.
E as influências? Hum... uma rápida busca na minha memória traz-me os nomes de autores que leio com freqüência como Helena Parente Cunha, Adelia Prado, Ana Paula Tavares, Fernando Pessoa, Lygia Fagundes Telles, Aleilton Fonseca, Clarice Lispector, Myriam Fraga, além de outros, mais jovens, da minha geração ou próxima a ela.
- Você classificaria o seu livro em algum gênero específico ou ele é o amálgama de alguns? Missivas, contos, crônicas.....
Quando escrevi Todas as cartas de amor não estive preocupada com o gênero. Procurei o quanto pude me esquecer que sou estudiosa de literatura. Pensei apenas em dar vazão à personagem e à sua necessidade de narrar seu cotidiano e sua busca de uma forma altamente subjetiva. Para atender a esse propósito escolhi as cartas: um gênero desprestigiado pelo acelerado tempo do ciberespaço. Um gênero que promove o exercício de reflexão à medida que as linhas são preenchidas, e permite lembrar ou evocar imagens, situações, desejos. Porém, as cartas da personagem assumem matizes de poesia e de prosa, são um gênero híbrido.
- O que nós leitores encontraremos em Todas as Cartas de Amor?
Os leitores encontrarão em Todas as cartas de amor um percurso de autoconhecimento da personagem narradora. Se o desejo mais profundo do ser humano é ser amado e ser feliz, o que o livro apresenta é o caminho encontrado pela mulher das cartas para realizá-lo.
- Helena Parente Cunha prefacia o seu livro de estreia. Qual o impacto dessa escritora em sua vida acadêmica e literária? A Mulher no Espelho foi um grande encontro?
Encontrei-me, pela primeira vez, com Helena Parente Cunha em 2001, ainda na graduação, quando comecei a estudar sua obra narrativa. Seus livros me inquietavam e desconcertavam, e ainda o fazem. Eu era uma menina cheia de questionamentos e os livros dela colocavam mais interrogações em minha cabeça. Apaixonei-me ao primeiro livro, Vento, ventania, vendaval. Passadas algumas leituras, cheguei a Mulher no espelho, uma enxurrada de golpes no estômago. Era assim que eu me sentia e ainda me sinto ao reler o livro. As muitas mulheres que sou, fui e serei explodem em mim quando leio Helena. Ítalo Calvino estabelece várias definições para o que se poderia chamar de um livro “clássico”, entre elas a seguinte: “dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los”. Os livros de Helena fazem parte dos meus clássicos.
Passados alguns anos, a amizade que já existia com os livros levou-me à autora. Cultivamos uma amizade cheia de carinho e respeito. Aprendo muito com ela, seja nas nossas conversas, seja mediante a leitura de seus livros, seja através do silêncio dos tempos que ficamos sem nos encontrar.
- Sente a responsabilidade de existir como escritora de literatura?
Assumir a responsabilidade de ser mulher e escrever literatura é um compromisso que tenho com a pulsão de arte que brota dentro de mim. Inserida no meu tempo, vejo os misóginos olhos de esguelha sobre as escaladas femininas na sociedade e digo do que vejo e sinto. Como diz Drummond, “nãos serei o poeta de um mundo caduco./ (...) Estou preso à vida e olho meus companheiros”.
Sou leitora e professora e sei dos impactos que o texto literário pode promover no leitor. Não concebo a literatura como redentora de coisa alguma, mas acredito que impactar, inquietar, desacomodar pode ser uma boa e inútil função para a ela.
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